1. OS CONCEITOS-CHAVE DA CARTA
1.1 "Fratri Antonio, episcopo meo"
Santo António aparece na história da Ordem Franciscana quase como elemento-surpresa. Ele revela de forma surpreendente seus dotes de grande pregador, fundado numa sólida preparação doutrinal, quando, em 1221, foi convidado a pregar numa ordenação sacerdotal, em Forli, na Itália. Daí em diante inicia realmente o seu oficio de pregador, confundindo os hereges (donde lhe vem o título "Martelo dos hereges"), e causando grande admiração por parte do papa Gregório IX quando este ouve uma pregação de Santo António em 1228. O Papa chama-o de "Arca do Testamento" e "Armadura da Sagrada Escritura".
Pelo facto de Santo António estar ricamente ornado pela Sagrada Escritura, por sua sólida formação teológica e doutrinal, Francisco de Assis dá-lhe um titulo inusitado chamando-o de "episcopo meo" (= meu bispo). Sabemos que Frei António jamais recebera uma mitra episcopal. Este titulo Francisco lhe dá para exprimir sua profunda veneração pelos verdadeiros teólogos e pregadores, enquanto dispensadores da Palavra de Deus. De Tomás de Celano, o primeiro Biógrafo de Francisco, podemos colher este depoimento: "Queria que os ministros da palavra se entregassem totalmente aos estudos espirituais... E afirmava: o pregador tem que haurir primeiro na oração, feita em segredo, aquilo que depois vai derramar em palavras sagradas. Tem que se afervorar primeiro por dentro, para não proferir palavras frias. Afirmava que este oficio devia ser respeitado e que todos deviam venerar os que o exercem. Dizia: eles são a vida do corpo, eles é que combatem os demônios, eles são a luz do mundo. Achava que os doutores em sagrada escritura mereciam honras ainda maiores. Certa ocasião fez escrever o seguinte como norma geral: devemos honrar e venerar todos os teólogos e os que nos administram as palavras de Deus como aqueles que nos administram espírito e vida" (2Cel 163). Esta "norma geral" encontramos no v. 13 do Testamento de São Francisco.
Portanto, este título: "episcopo meo", é antes de tudo uma expressão de louvor e elogio que Frei Francisco presta a Frei António pelo ofício específico que desempenha dentro da Ordem: o de Pregador e Teólogo. Sabemos que, na Idade Média, o ofício da pregação dogmática era um encargo reservado unicamente aos prelados (bispos) e, em alguns casos, também a determinados sacerdotes, desde que estes sacerdotes estivessem devidamente preparados e tivessem recebido uma autorização especial do bispo para esta pregação doutrinal. Nesse sentido, por Frei António preencher estes requisitos, Francisco lhe presta esta homenagem carinhosa e fraterna.
Se de um lado temos a pregação dogmática, de cunho mais doutrinal, reservada unicamente aos que recebiam tal permissão, por outro lado temos a pregação penitencial, de cunho parenético, que todos os irmãos receberam no momento da aprovação oral da primeira forma de vida apresentada ao Papa Inocêncio III, em 1209: "Ide com o Senhor, irmãos, e conforme o Senhor dignar inspirar-vos, pregai a todos a penitência" (1CeI 33).
Aquilo que Santo António agora deverá fazer ("ler a Sagrada Teologia"), servirá para que os irmãos melhor possam viver sua vida penitencial e para que, no viver esta vida, a pregação fosse eminentemente teológica.
1.2. "Placet mihi quod sacram theologiam legas fratribus"
"Legas fratribus": o verbo "legere" (= ler) tem no latim medieval o significado de ensinar. Conseqüentemente, o "legens" ou "lector" (= leitor) é aquele que ensina. Inclusive, no mundo monástico, o leitor era o mestre da formação dos monges. Também nas escolas o leitor era aquele que tinha como oficio ler e explicar a Sagrada Escritura aos alunos.
Portanto, este "placet". para que Frei António desempenhe na Ordem o oficio de "leitor", demonstra ainda a catolicidade de Francisco, isto é, o espírito de abertura e a grande sensibilidade eclesial que sempre carregou no seu coração.
"Sacram theologiam": não sei se esta era uma expressão usual. Seja como for, a Teologia. como tudo aquilo que está na esfera do divino, Francisco as cerca e reveste sacralmente: "santa Mãe do Senhor", "santas Palavras", "santa Cruz", "santos cálices", "Sagrada Teologia" etc. A Teologia não somente é sagrada pelo fato de ela ser um "discurso sobre Deus" (= teologia), mas também porque, a meu ver, aponta para um modo próprio de se fazer teologia. Assim, para o religioso, a teologia não é uma ciência especulativa, mas empenho sagrado através do qual se mergulha, de corpo e alma, no espírito do discurso divino. Os que se dedicam à Sagrada Teologia, especialmente os que por profissão religiosa já deveriam transpirar pela vida o discurso sagrado do divino, devem "afervorar-se por dentro" para poder "transmitir espírito e vida" (cf. 2Cel 163).
Olhando para uma das Admoestações de São Francisco, podemos perceber que existe um modo sagrado ("sacer") e um modo "profano" (carnal) de se fazer teologia: "A letra mata. o espírito vivifica. São mortos pela letra aqueles religiosos que cobiçam só saber palavras ... São mortos pela letra aqueles religiosos que não querem seguir o espírito da divina letra, porém só cobiçam saber palavras e interpretá-las aos outros. E são vivificados pelo espírito da divina letra os que não atribuem ao corpo toda a letra que sabem e cobiçam saber, mas pela palavra e pelo exemplo deixam-na ao Altíssimo Senhor Deus de que é todo o bem" (Adm 7).
"Inter": (= dentro): não é apenas uma preposição que aponta para o estudo como tal ("huius studium"), mas fala de uma circunstância de tempo, ou seja, da ação do estudo no seu desenvolver pleno. Em outras palavras: sempre que se estuda a Sagrada Teologia ("huius studium"), esse estudo deverá ser feito dentro ("inter") do espírito da santa oração e devoção.
"Huius studium" (= nesse estudo): nos seus Escritos, Francisco de Assis privilegia o verbo "studere". Mas não se trata de estudar para acumular um determinado cabedal de conhecimentos. O "studere" do qual Francisco mais fala é aquele no qual se adquire a sabedoria do espírito. Como já temos visto na 7ª Admoestação, existe uma consciência de que o estudo pode ser uma tentação que fere o espírito da pobreza, principalmente quando se trata de um estudo segundo o espírito da carne (do "eu"). O "placet" que Frei Francisco dá a Frei António é para que ele, no seu ensino aos irmãos, os faça crescer, "inter huius studium", na sabedoria ("sapere" = sabor) do espírito.
1.4. "Orationis et devotionis non exstinguas spiritum" (= não extingas o espírito da oração e devoção)
Portanto, o empenhar-se espiritualmente no estudo da Sagrada Teologia, com devoção e oração, exige o contínuo esforço para se manter vivo o sabor do espírito e, sem a posse desse espírito, não pode nem sequer acontecer a verdadeira teo-logia, e muito menos a Verdade Teológica. Pois, o "espírito da oração e devoção" é o que unge o coração do teólogo, assim como unge o coração do religioso nos mais diferentes ofícios que ele desempenha dentro da fraternidade: seja no trabalho, na oração, no estudo e na pregação. Em tudo e por tudo deve estar presente a unção vital do espírito para se poder transmitir retamente espírito e vida.
Em duas passagens da Regra Bulada se admoesta sobre a necessidade de não extinguir o espírito da oração e devoção: no capítulo V, quando fala do trabalho e no capítulo X, quando diz que "os que não têm estudos não procurem adquirir, mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e o seu santo modo de operar" (RB 10.8).
Qualquer oficio dentro de uma fraternidade evangélica não pode e nem deve ser executado funcionalmente. O oficio não possui um fim último em si mesmo, mas sempre é meio para se buscar e viver "o único necessário", isto é, o estar sempre na posse do "espírito do Senhor e seu santo modo de operar".
2. Um modo franciscano de se estudar a Sagrada Teologia?
A própria vida penitencial, abraçada por Francisco, António e Fraternidade, significa aprender a "sabedoria do alto, que vem de Deus" (2Cel 102), e esta sabedoria não se aprende sentado em cadeiras acadêmicas! O apoderar-se da ciência, dos talentos, das sabedorias, segundo a Carta aos Fiéis, leva o homem à dura experiência da morte, "perdendo, ainda neste mundo passageiro, a alma e o corpo" (2CtF 82-85).
Francisco não despreza e muito menos coloca em níveis inferiores a ciência das coisas santas. A verdadeira inteligência não passa pelo crescer da ciência no homem, mas por um amor a Deus. O Santo de Assis se preocupa com o futuro, especialmente quando a cobiça do saber poderia levar os irmãos a uma terrível presunção: "julgar-se-iam mais fervorosos e mais inflamados no amor de Deus por causa da inteligência das Escrituras; quando, precisamente com o crescer da ciência, ficariam, por dentro, frios e vazios, e assim, não podendo regressar à sua antiga vocação, porque teriam deixado passar o tempo que lhes fora concedido para nela viverem" (LP 70). E ainda, dentro do mesmo contexto da Legenda Perusina, se diz que ele, Francisco, dedicava o maior apreço aos doutos da Ordem e outros sábios. enquanto esses nos "comunicam espírito e vida".
Assim, creio que Santo António captou muito bem e em grande profundidade a doutrina de São Francisco para que, no Studium de Bolonha, pudesse realmente transmitir aos irmãos o gosto pela Sagrada Teologia, sempre em conformidade com o "espírito da santa oração e devoção". São Francisco, com sua vida e pregação penitencial, e Santo António, com sua vida penitencial e pregação doutrinal, ambos percorreram o mundo "não em eloqüência persuasiva da sabedoria humana, mas na doutrina e na demonstração do Espírito" (1Cel 36). A vida interior de ambos se caracterizou, para usar uma expressão de São Boaventura, pela "total hospitalidade do Espírito do Senhor, sendo corretos intérpretes das Escrituras, e dóceis nos ensinamentos, a fim de conquistar a pérola preciosa de que fala o Evangelho" (LM 12. 2.14).
A Carta de São Francisco a Santo António, portanto, vai muito além de um mero consentimento. Ela não estaria representando uma decisão significativa e derradeira de Francisco sobre a questão dos estudos na Ordem? Se assim o admitirmos, esta carta estaria deixando de ser uma carta confidencial e privativa e assumiria uma legislação definitiva para toda a Ordem no que se refere ao estudo da Sagrada Teologia, bem como uma atitude espiritual frente às demais ciências que, bem cedo, começaram a fazer parte da vida dos Irmãos Menores em Bolonha, Paris, Oxford e demais centros de estudo.
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